segunda-feira, 13 de setembro de 2010

À Alicinha

De cabelo grisalho, a pele enrugada pelo tempo,sobressaía-lhe o sorriso a a manifesta bondade.
Nunca se descurou.
Um laço no cabelo, uma saia com motivos ou brilhantes,a Alicinha,como lhe chamo,destacava-se pelo seu glamour.
Inserida numa instituição de deficientes motores, deduzi que ali estivesse por causa da sua situação física,e só.
Mas a Alice tem uma história, história essa que o seu sorriso sempre camuflou.
Conhecia-a, já pouco falava, devido a alguns AVC. Mas a Alice sempre se esforçou por se fazer entender,e a cada conversa,íamos sempre parar à brincadeira.
A Alice adorava rir. E eu adorava vê-la rir de satisfação.
Não lhe sei a idade, mas sei que já é avançada.

Alicinha, como lhe chamo, adora passear, e não recusava um convite...há uns tempos atrás. Digo há uns tempos atrás, porque hoje a Alice está numa cama.
Não se levantará mais.
Vou visitá-la por vezes, e juro que me dói o coração.
Dói-me o coração, sobretudo porque a Alicinha não sabe no que acreditar.
A vida sempre a levou a isso.
De uma família que a renegou em criança,a Alice foi adoptada por uma senhora que já faleceu faz muitos anos.
Viu-se sozinha.
Penso que pior que não ter família, é tê-la e não poder contar com ela.
Pelo que sei,ainda a tentaram visitar uma vez. Mas a Alice, presa às amarguras do passado,aos contratempos da continuidade da vida, e ainda ao presente doloroso, não quis ver a família.
Deve ser muito duro.
Fui visitar a Alice ontem, domingo. A Alice já não fala, não mexe, e pouco sorri. Entendo-a pela expressão do olhar.
Senti que está assustada.
Aproximei-me,percebi que me reconheceu, e comecei a falar-lhe do jeitinho que tem para se aperaltar.
Contudo,senti-me ridícula,uma vez que a Alice já não sai da cama...
Então,lembrei-me de lhe falar de Deus.
Pedi-lhe que falasse com Deus,com o seu anjo da guarda ou guia espiritual,como o quizesse chamar,mas que lhe falasse,que lhe pedisse....
mas depois pensei: pedir o quê? Nem todas as pessoas estão preparadas para a morte,que é o destino mais certo.
Mas eu falei.
Tentei contornar a conversa, e disse-lhe que entendia que a vida custa, e que todos, mas todos terminamos no mesmo sítio.
Disse-lhe que poderia ir eu dali a cinco minutos até,tudo é incerto.
E o seu rosto permanecia atento nas minhas palavras,mas era um rosto assustado.
Tentou falar comigo,e eu perguntei se queria água.Disse-me que sim.Fui buscar um copo com tampa e palha incorporada.Olhou intermitentemente para o seu lado direito,e percebi que queria algo dali. Lá percebi que se tratava de uma fralda pequena,para que eu não a molhasse ao beber água.
Não adiantou,eu tremia por dentro.
A Alice lá ia bebendo um pouco de água,mas o meu coração estava a rebentar.
Foi então que entrou no quarto uma auxiliar,e eu pedi-lhe que desse água à Alicinha,porque esta teria mais jeito que eu, e até porque me aguardavam 100 km até chegar a casa,e já tardava.
Não fui totalmente sincera,bem sei.
Mas penso ter tido coragem para a ter ido visitar,mas como me custou Meu Deus.
Tinha medo que falecesse ali ao meu lado.
Eu não tenho medo da morte,mas tudo o que é novo e desconhecido,é pouco desejado também.E nunca me aconteceu acompanhar o adormecer do coração de alguém,muito menos de uma pessoa que tanto carinho nutro,apesar de conhecer há não mais que um ano.
Fiz-lhe uma carícia na testa,passei-lhe as mão pelo cabelo que outrora andava "empiriquitado",dei-lhe um beijo,disse Adeus,e afastei-me.
Desta vez já não me pôde abraçar,como antes.Mas eu senti o seu abraço,apesar de não ser físico nem palpável.
Talvez não a veja mais nesta existência.

A Alice, a acrescentar aos seus problemas vivenciais e precalços de saúde, tem ainda um cancro no peito.
Os médicos não podem fazer mais nada.
A Alice tem dores, mas nunca a ouvi queixar-se.

Termino com o pensamento de que apesar de poder parecer egoísta, considero que esta grande mulher cresceu muito nesta vida.E que mesmo com todas as infelicidades relativas à saúde, a maior delas toda foi a rejeição da FAMÍLIA!!!!

Beijinho, Alicinha

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